
Não chove. Nem nuvem de esperança há nesse
céu azul e indiferente, dominado pela rubra
circunferência do sol.
Não chove! E a gente, o que faz! Resmunga.
Sua. Bebe refrigerantes. Lastima a sorte das
roças e abandona a gravata.
Nas aldeias goianas, no entanto, o povo luta
contra a seca que já se prolonga demais,
ameaçando engolir outubro inteiro. Luta,
rezando. Luta, penitenciando-se. Luta,
realizando tradicionais sacrifícios, sob
ritos de superstição e piedade.
Ao meio-dia, faz-se a procissão. Muitas
mulheres, alguns velhos, meninos. Com as
suas vasilhas e a sua fé se dirigem ao rio
ou à aguada da vila.
Cheios os baldes, potes e garrafas volta o
cortejo, rezando rezas milagrosas e cantando
loas súplices a Maria Madalena. Rezas e
cânticos tirados, quase sempre, por negra
de muitos anos, de voz rouquenha e
lastimosa. A turba, com respeito, entoa os
estribilhos e às vezes protesta quando o
canto sai desentoado: - "tira outra vez!"...
A procissão já atravessou a rua encalmada,
no silêncio dos homens que trabalham e dos
vagabundos que, na venda, conversavam, e,
agora, se aproxima do cruzeiro, em frente
à igreja. Soa o sino sons tristes sobre
o sertão em expectativa...
Uma por uma, todas as vasilhas se despejam
ao pé da cruz. A água do sacrifício penetra
a terra sedenta e a alma daquela gente boa
e humilde sonha com a chuva descendo do
céu, dias e dias, para molhar os campos,
dar de beber ao gado, correr pelo chão num
desperdício de enxurradas e poças. Enquanto
sonham, com aguaceiro e lufadas, o suor lhes
cai dos rostos e é prece também.
Dizem ainda derradeiro Padre-Nosso e a voz
que tirava rezas e cantos encerra a cerimônia:
- "agora cada um oferece pras almas do
Purgatório"...
Na cidade grande, sofrendo diariamente a
provação da canícula, eu ouço a voz
angustiante dos que, nos povoados longínquos,
molham o cruzeiro para que Deus nos mande
chuva. Seus cantos, que eu não sei de onde
viera, ressoam em minha alma, com acentos
estranhos:
O tempo estropiou. por certo, a letra desses
benditos. Mas todos eles ainda falam,
mansamente, de coisas que não são apenas
poesia. Falam em chuva, falam do pão que
consola. Falam em misericórdia também.
"Do Livro de Ana, de Ursulino Leão,
p. 104 e 105"